Há quanto tempo você não experimenta a visão de um céu realmente escuro? Revirando meus arquivos, encontro referências a uma noite distante, em Janeiro de 1976, quando um blackout abateu-se sobre a (hoje) cidade de Imbé, situada no litoral norte do Rio Grande do Sul. A metamorfose foi súbita. As estrelas se multiplicaram num piscar de olhos, acompanhadas da majestosa Via Lactea estival, alta no céu. Um firmamento encharcado de pontos luminosos de todos os tamanhos, onde se destacavam as constelações de Órion e Cão Maior. À medida que os olhos iam ficando adaptados à escuridão, mais e mais estrelas surgiam. Indescritível!
Na segunda metade dos anos 1970, quando iniciei minhas primeiras observações sistemáticas do firmamento, usufruía em meu quintal de um céu com magnitude limite 4.5 a 5.5, nas noites mais cristalinas e sem Lua, usualmente após a lavagem da atmosfera realizada pelo deslocamento de uma frente fria, e quando, bem entendido, um vizinho situado a dois terrenos de distância resolvia apagar as incômodas lâmpadas que iluminavam seu pátio as quais, em geral, quando não ficavam acesas a noite inteira, eram desligadas somente ao redor das 23 horas. Mesmo assim, nada mal, para quem vivia próximo aos limites da zona urbana de Porto Alegre.
Apenas uma década depois, o céu já não era mais o mesmo. No apagar das luzes do icônico Observatório do Morro Santana, operado pelo Departamento de Astronomia do Instituto de Física da UFRGS, onde tive oportunidade de passar muitas noites, a magnitude limite já não ia muito além de 4.0.
Em alguns turnos de observação no Pico dos Dias, em Brasópolis, no sul de Minas, onde se localiza o Observatório Astrofísico Brasileiro, com seu telescópio de 1.60 m de diâmetro, o céu era bem escuro, mas dava para ver, do alto e ao longe, as luzes de várias pequenas cidades do interior. A maior delas, Pouso Alegre, chamava imediatamente a atenção.
A noite mais perfeita de que me lembro foi aquela passada no interior do município gaúcho de Barra do Ribeiro, a sudoeste de Porto Alegre, aos 29 de Maio de 1981 (veja a primeira coluna desta série de crônicas, neste Portal). Naquela mesma data, nascia meu cachorrinho Billy, que se juntaria ao outro, de nome Pom(binho), já então mais idoso, como companheiros em minhas noites astronômicas quando estava em Porto Alegre. Na Barra do Ribeiro, seguiram-se muitas outras vigílias noctívagas memoráveis, no sítio Kappa Crucis, do nosso saudoso amigo Alceu Félix Lopes, ativo membro da Sociedade Astronômica Riograndense (SARG). Ali, a magnitude limite alcançava 6.0, às vezes até um pouco mais. Tão escuro que mesmo o mais experiente dos observadores se confundia, na hora de reconhecer as constelações!
Um céu menos perfeito, mas ainda excelente, experimentamos algumas vezes no Parque Estadual de Itapoã, cerca de 50 quilômetros ao sul da capital gaúcha, em diversas ocasiões nos anos 1980. Lá, em 6 de Novembro de 1985, reencontramos o cometa Halley, pela primeira vez no Rio Grande do Sul, desde sua aparição em 1910 (veja Túnel do Tempo 4, neste Portal). E foi na mesma região, na Praia de Fora, de frente para a Lagoa dos Patos, que apreciamos os melhores momentos dele em março e abril de 1986.
Céu de breu, mesmo, havia em Outubro de 1991, nos contrafortes argentinos da cordilheira dos Andes, a 2552 metros de altitude, a oeste da cidade de San Juan, no Complejo Astronomico El Leoncito (CASLEO), que abriga o maior telescópio em território argentino, um refletor Ritchey-Chretien de 2.15 metros de abertura, hoje batizado em homenagem ao astrônomo Jorge Sahade (1915 – 2012).
De Calafate, amável cidadezinha da Patagônia, lembro-me apenas de ver Alfa e Beta do Centauro rondando o zênite, numa noite gelada do inverno de 2015. O capuccino com chantilly e os excelentes sanduíches da Panaderia y Confiteria Don Luis são outra boa lembrança, assim como a pizza Big Bang, do restaurante La Lechuga, embora não consigam compensar minha decepção em não ter podido ver a olho nu Polaris Australis pendurada a 50 graus de altura…
Hoje em dia, aqui na Base Tranquilidade, minha residência na zona rural em Lomba Grande, interior do município de Novo Hamburgo, 40 quilômetros ao norte de Porto Alegre, a magnitude limite nas melhores noites ronda 5.5, com o Saco de Carvão no limite da percepção confortável.
Uma tendência não se pode negar: céus escuros estão em acelerado processo de extinção. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987), “a poluição, monstro de mil faces, nos vai sonegando a limpidez do ar”. Limpidez inclui luminosidade artificial parasita. A maioria das pessoas, mesmo autoridades, nem sequer ouviu falar de poluição luminosa. Enquanto persistir esta situação, estaremos substituindo constelações milenares por asterismos de neon, apartando-nos da natureza, encapsulando-nos em nosso cosmos artificial, sob o falso pretexto da segurança, ao mesmo tempo em que privamos as novas gerações do seu direito nato de admirar o maior espetáculo que a noite é capaz de proporcionar: um negrume salpicado de gemas estelares.
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Luiz Augusto L. da Silva é astrônomo, e persegue céus escuros desde 1973.