Mais de um quinto da humanidade não acredita mais em Deus. O grupo formado por descrentes, agnósticos, e ateus constituiria a maior família de pensamento do mundo, já que o Islã reuniria cerca de 1 bilhão e 200 milhões de fiéis e a Igreja Católica, 1 bilhão e 132 milhões.
Na Europa, 25% da população se diz “não religiosa”, com taxas mais baixas nos países latinos: de 12% a 15% (16.2% na Itália, 15.6% na França, 2.9% na Espanha e 4.6% em Portugal). “Ateus convictos”: 5% na Europa, 12% na França, 7% na Bélgica, 6% na Holanda, 5% em Portugal e 4% no Reino Unido.
O ateísmo declarado é uma necessidade para construir um homem moral, sólido e completo.
Sobre a proibição do ateísmo militante nos países islâmicos: pode haver um Islã tolerante com as outras religiões e favorável aos direitos humanos, mas sua atitude em relação ao ateísmo continua extremamente hostil. O Islã é talvez a mais intolerante das religiões deístas, embora existam também muitos muçulmanos tolerantes. Há muçulmanos que lutam pelos direitos humanos, mas não há muitos que lutem pelos direitos dos ateus.
O ateísmo no meios judeus tem uma posição ambígua, tamanha é a associação da identidade judia com a religião. Contudo, há inúmeros judeus ateus. Estima-se que mais de 50% dos judeus são descrentes ou agnósticos.
Com a decomposição das religiões tradicionais, os ateus sentem menos necessidade de se definir como ateus, e a incredulidade tende a se dissolver num conjunto humanista e laico mais vasto.
O mais surpreendente é constatar que a questão da existência de Deus, embora não resolvida, tornou-se secundária. A questão está tão gasta que interessa a poucas pessoas. A decomposição dos grandes conjuntos religiosos se dá em proveito de uma nebulosa espiritualista em que convivem o melhor e o pior, o respeitável e o desprezível, o absurdo e o ponderado.
Essa linguagem permite à Igreja contemporânea realizar a proeza de se proclamar representante de toda a humanidade, inclusive de todos que fazem oposição a ela.
Estamos, hoje, no Ocidente, numa situação histórica inédita: uma decomposição do religioso, sem recomposição à vista. Estamos diante de um cristianismo desregulado e consertado, estilhaçado; surgem grupos de crentes e descrentes, e uma massa de partidários de fés difusas, que misturam cristianismo, esoterismo, ocultismo, vidência, astrologia e cultos orientais, sem nenhuma certeza verdadeira. Um naufrágio para o espírito racional. A nebulosa místico-esotérica que rejeita as ortodoxias caracteriza-se pela primazia da “experiência”, da transformação de si mesmo por meio de técnicas psicocorporais inspiradas no Extremo Oriente, com o objetivo de atingir a felicidade terrena. A ênfase é dada a uma ética do amor, com uma visão monista do mundo, num contexto de grupos afins que se reúnem em volta de líderes livremente escolhidos, de carisma por vezes duvidoso.
O sagrado está ameaçado de extinção, dissolvendo-se num individualismo exacerbado: os empréstimos de outras espiritualidades, como o budismo, o hinduísmo, o zen, o xamanismo e outros, isolados de seu contexto etnológico e cultural original, transformam-se em simples práticas mágicas que visam a felicidade pessoal. Esta religiosidade vaga e difusa continua a se desenvolver graças à perda de influência contínua das grandes instituições religiosas, em proveito do “simplesmente mágico” tendente ao paracientífico, do psicológico, do humanismo revisitado.
A Tentação Paracientífica
A deriva paracientífica no interior desses movimentos é acentuada e acarreta sério problema de credibilidade. Mistura impressionante de fragmentos de crenças das mais diversas origens, numa espécie de sopa esotérico-astrológica, temperada com divagações proféticas e rudimentos científicos mal assimilados, que assusta o espírito cartesiano.
As inépcias etéreas da Nova Era só têm equivalente, em termos de absurdo, no sincretismo católico-espírita-animista da umbanda, que faz sucesso entre os brasileiros, e no Japão, onde mais de 300 movimentos religiosos atraem 15% da população.
A partir do momento em que não se faz mais diferença entre ciência e paraciência, e as fronteiras entre o crível e o incrível desaparecem, as portas se abrem para todos os tipos de credulidade. A aliança tão desejada entre ciência e fé, na busca da verdade, pode produzir um monstro que nos distancia irremediavelmente dela.
É com perplexidade que vemos movimentos que afirmam que a ciência mais moderna, sobretudo a física das partículas elementares, pode descobrir realidades religiosas, místicas e esotéricas. E essa perplexidade cresce quando vemos que cientistas autênticos, cujas relações com a meditação transcendental são intrigantes, participam desses movimentos.
Em O Tao da Física, Fritjof Capra também faz aproximações inquietantes entre física quântica e mística oriental. A transdiciplinaridade se encontra no cruzamento dessas tentativas sincréticas.
Tudo isso é desconcertante, mas é sintomático da busca por novos caminhos pós-religiosos, assim como pós-ateus. O risco está em que, em alguns casos, isto pode levar a especulações aberrantes ou perigosas.
As pesquisas revelam que a grande maioria dos “novos crentes”, adeptos das modas esotéricas, astrológicas ou sectárias, possui níveis de instrução que não vão além do ensino médio e cede sem reflexão à voga do irracional: se 11% de franceses acreditam em fantasmas, 21% em reencarnação e 46% na explicação da astrologia para a personalidade, devemos nos preocupar com o equilíbrio mental de uma sociedade “avançada” como a nossa. Sem dúvida, a incapacidade do racionalismo de fornecer uma explicação válida do mundo e, sobretudo, de assegurar valores culturais estáveis e críveis, é responsável por essa ascensão do irracional.
Às vezes, a própria ciência contribui para confundir a distinção entre o crível e o não crível: lembramos que “o caso da memória da água”, em 1988, que validava a homeopatia pelos métodos científicos clássicos, deveu-se a uma cooperação científica internacional que envolveu diversos cientistas de alto nível e, antes de ser, de certo modo, ridicularizado, deu ensejo a publicações em revistas científicas reconhecidas, até mesmo na prestigiosa Nature. Tudo isso nos parece revelador de um sentimento social de incerteza e interrogação sobre a natureza e a validade da ciência, propício ao desenvolvimento de crenças em que não se pode crer.
As pessoas se declaram “sem religião”, mas acreditam em Deus, na alma, na vida depois da morte e – por que não? – na metempsicose. Muitas se dedicam às práticas esotéricas, à astrologia transpessoal, numa abordagem global, “holística”, da realidade que poderíamos chamar de spinozismo popular. Elas captam as “forças”, as “vibrações”, as “energias” psíquicas e espirituais; adotam técnicas psicocorporais do Extremo Oriente.
A religião perdeu seu papel essencial: as sociedades avançadas não fazem mais referência ao divino e, se o sentido religioso persiste, trata-se de um sentido sem Deus, em que o que está em questão é o sagrado, o sobrenatural, ou mesmo o divino – mas com uma grande ausência: Deus.
A religião é abandonada porque condena as atitudes que têm uma função imediata de equilíbrio emocional, opondo-se diretamente a elas. Numa pesquisa realizada pelo instituto CSA em março de 1997, intitulada “Deus interessa aos jovens?”, à pergunta principal “Você acredita em Deus?”, 51% responderam: “Não”. O progresso dessa negação é constante há trinta anos: 17% diziam “não” em 1967, 30% em 1977.
Estamos na era da confusão. O que dizer? O que fazer? Em que acreditar? O que pensar? A dúvida é a palavra-chave. Técnica, tecnologia e sociedade evoluem a passos acelerados, escapando ao controle do pensamento sistematizador: a ação ganha da reflexão, que não tem mais tempo de teorizar. O pensamento econômico é pego de surpresa por atores anônimos, a moral, pela multiplicação de casos inéditos (no campo da biologia, notadamente); o pensamento filosófico, pelas mutações culturais; o pensamento religioso, pela desintegração dos credos. A ação não é mais orientada, não é mais pensada; ela volta a ser selvagem.
A moda dos anjos já passou. Há outras, como a reencarnação. Todas essas crenças extravagantes teriam sido chamadas de ateísmo em outros tempos. Hoje, ao contrário, tudo o que foge do materialismo determinista puro é qualificado de religioso: o homem do ano 2000 vê espontaneamente o mundo como ateu.
Deus, ao se retirar, levou com ele o sentido do mundo, e o homem tenta em vão recuperá-lo por uma acumulação de racionalidade.
O século XXI será religioso ou não será. Não há uma marcha regular que vá de uma situação exclusivamente religiosa a um triunfo inelutável da descrença. A cultura passa por fases de irracionalidade, em que o homem duvida das capacidades humanas de raciocínio e prefere refugiar-se em crenças irracionais, heteróclitas, de tipo esotérico e paracientífico; o sentimento se sobrepõe à razão, a paixão à inteligência, o mistério e a confusão à clareza. Durante tais períodos, as grandes religiões entram em crise, ao mesmo tempo que o ateísmo teórico; as seitas, os cultos de mistérios proliferam na maior confusão.
Na Antiguidade Clássica, quando a religião greco-romana atingiu seu apogeu, os filósofos gregos, apoiando-se na razão, elaboraram sistemas céticos ou ateus. No entanto, os templos dominavam as cidades e eram frequentados por um povo crente. A partir do século I, as religiões de mistérios proliferam; o povo abandona os antigos deuses, e as superstições se multiplicam. Nessa crise de irracionalidade nasce o cristianismo, e rapidamente se estabelece uma nova síntese racional, que marca a Idade Média até o fim do século XIII. Do século XIV ao XVI, ocorre o retorno do irracional, as hipóteses abundam, as heresias pululam, a autoridade da Igreja é destruída pelo Grande Cisma. Com os primórdios do humanismo, o pensamento pagão volta com força. As descobertas geográficas, a revolução copernicana, as transformações econômicas afligem os espíritos, que se voltam para o esoterismo, a magia, a cabala, o irracional. O retorno da razão ocorre no século XVII com o cartesianismo. Os libertinos, os céticos, e os filósofos iluministas elaboram sistemas ateus cada vez mais audaciosos. O século XVIII assiste ao confronto entre a razão religiosa e a razão ateia. Desse confronto estéril, o irracional sai vencedor, com o espírito romântico. A Revolução Francesa e o início do século XIX são a afirmação maciça da descrença prática. Credo e descrença buscam novas formas de expressão, fora da razão, mas um novo período racional se inicia por volta de 1830. O progresso científico dá impulso ao materialismo.
Não há dúvida de que o movimento teria ido até o fim – o triunfo do ateísmo – se o questionamento do poder da razão, na segunda metade do século XX, não tivesse interrompido o processo. E eis-nos mais uma vez num período de irracionalidade.
As obras avançam durante os períodos de racionalidade, e se interrompem durante os períodos de irracionalidade, quando os homens dispersam-se em crenças esotéricas, paracientíficas, paranormais ou mágicas. Estamos num período assim: as obras foram interrompidas, e ninguém sabe se serão retomadas um dia. Para que sejam retomadas, novos valores teriam que surgir, permitindo que a maioria dos homens se unisse novamente em torno da construção comum. E a questão não é saber se o século XXI será crente ou ateu, religioso ou descrente, mas se o formigueiro humano ainda tem a vontade e os meios de inventar um futuro para ele.
Resenha elaborada por Luiz Augusto L. da Silva.