Luiz Augusto L. da Silva *
… a vida, a inteligência e a indagação começam
Christopher Hitchens (1949 – 2011),
exatamente no ponto onde termina a fé.
Deus não é Grande, 2007.
Sem choro, nem ranger de dentes. Até o momento em que escrevo estas linhas, inexistem quaisquer evidências científicas minimamente convincentes em prol da existência de qualquer espécie de deus, ou deuses.
A pergunta fundamental que se coloca é: precisamos realmente deles? A resposta é não. Um só deus oniciente e todo poderoso já poderia dar conta do recado. Então reformulamos a pergunta: precisamos mesmo de um único deus? A ciência nos permite responder de maneira enfática: também não.
A cosmologia moderna aponta modelos onde o conceito de um deus criador é totalmente desnecessário. O multiverso pode ser infinito, tanto no tempo quanto no espaço. Sem princípio, nem fim. Flutuações quânticas aleatórias dentro dele podem gerar infinitos big-bangs o tempo todo, produzindo universos estéreis ou férteis, viáveis ou inviáveis para a existência de estrelas, planetas, galáxias, e formas de vida. O existir representa um estado mais estável do que o não existir, assim não necessitamos um criador para acender o pavio de cada um daqueles big-bangs.
No livro Breves Respostas para Grandes Questões (2018, Ed. Intrínseca, Rio de Janeiro), o físico teórico e cosmólogo britânico Stephen Hawking (1942 – 2018) escreve, à página 61: Na minha opinião, a explicação mais simples é que deus não existe. Ninguém criou o Universo e ninguém governa nosso destino.
Erro
Aqui precisamos abrir um parênteses para comentar o que ele acrescenta a seguir: Isso me levou a perceber uma implicação profunda: provavelmente não há céu, nem um além-túmulo. Acho que acreditar em vida após a morte não passa de ilusão. Não existe evidência confiável disso e a ideia vai contra tudo que sabemos em ciência.
É um equívoco filosófico afirmar que a inexistência de deus implica necessariamente na inexistência de um possível fenômeno natural, talvez amparado nos princípios da teoria eletromagnética, que poderia ser referido como a persistência (ou histerese) da consciência e de uma personalidade após a morte biológica do organismo que a gerou. Embora esta questão ainda seja altamente controversa, e esteja muito longe de poder ser considerada satisfatoriamente esclarecida, duas coisas são inegáveis: o problema tem sido bem pouco investigado sob o ponto de vista estritamente científico e, sim, existem estudos acadêmicos sérios, embora não totalmente conclusivos, que sugerem a existência daquele fenômeno [para um review de papers nesta área cobrindo o período 2000 – 2015 veja, e.g., Bastos Jr. et al., 2015, Arch. Clin. Psychiatry, 42, (5), 129; consulte ainda Sarraff et al., 2021, EXPLORE, 17, (5), 396; e Almeida & Lotufo Neto, 2004, Rev. Psiq. Clin., 31, (3), 132, entre outros].
Se aqueles estudos estiverem certos, a única possibilidade razoável é que se trataria de fenomenologia física natural, a ser compreendida e interpretada unicamente à luz da ciência, nunca do misticismo ou na esfera da religiosidade. Também fica óbvio ― e nisto Hawking tem toda a razão ― que a expressão “vida após a morte”, além de trazer embutida um flagrante contra senso, seria totalmente inadequada para descrever o que poderia estar acontecendo.
Paradoxo
Epicuro (341 a.C. – 270 a.C) foi um filósofo grego do período helenístico. Além de haver atinado com a ideia básica da evolução por seleção natural 2300 anos antes de Darwin, ele formulou o que hoje se conhece como o paradoxo que leva o seu nome. Se Deus é oniciente e onipotente, então ele tem conhecimento da existência do mal e da injustiça, e poderia acabar com eles. Se não o faz, então no mínimo não é onibenevolente, ou seja, não passaria de um omisso, pois nenhum ser educado racional poderia aceitar a tese de que o mal, a injustiça, e o sofrimento constituem ferramentas válidas ou legítimas para alavancar a evolução do que ou de quem quer que seja. Simplesmente o mal não se justifica.
Aurelius Augustinus de Hipona (354 – 430), filósofo e teólogo também conhecido como Santo Agostinho, contestou o paradoxo de Epicuro defendendo que o mal seria a ausência de Deus (?!). Para ele, o mal não estaria em Deus, mas residiria no homem, com suas escolhas e livre arbítrio. Ora, isto não justifica nada porque, uma vez onipotente, Deus poderia interferir no comportamento do homem e acabar com a existência do mal.
Para o teólogo italiano Tomaz de Aquino (1225 – 1274) o mal não existia, e sim a ausência do bem… Alegações como essas passam a anos-luz de solucionar o paradoxo, além de soarem estapafúrdias, ridículas mesmo.
A verdade é que, se uma só criança morrer de fome ou por doença, no mínimo Deus não seria onibenevolente. Poderia ser assim porque não tomara conhecimento. Mas isto implicaria diretamente que ele não é onipresente/oniciente, o que poderia ser sugestivo de que não seja também onipotente pois, se o fosse, poderia optar por ser também onipresente/oniciente. Por outro lado, se Deus tudo pode e não deseja ser onipresente/oniciente, então seria omisso, na melhor das hipóteses, ou canalha, na pior delas. O mesmo seria válido para o caso dele optar deliberadamente por não ser onibenevolente, mesmo sendo onipotente, onipresente, e oniciente. Não tem como fugir disso.
O Deus Judaico-Cristão
O perfil do Deus da Bíblia é particularmente vulnerável ao paradoxo de Epicuro. Além de omisso ou canalha, revela-se também xenofóbico e homofóbico. Se não, vejamos: em Números, 31, 17-18, Moisés, supostamente inspirado pelo mesmo deus que leva, hoje, aqueles que governam Israel a bombardear escolas e hospitais na Faixa de Gaza, matando crianças, civis e animais inocentes, ordena a seus generais, antes da investida militar contra os midianitas: Matai todas as crianças do sexo masculino. Matai igualmente todas as mulheres que tiveram relações sexuais. Não conserveis com vida senão as meninas e as moças virgens; elas vos pertencem.
Em Deuteronômio, 23, 1-7, lemos: Nenhum homem castrado, que tenha esmagado os testículos, ou amputado o órgão genital, poderá fazer parte do povo do Senhor.
Em Ezequiel, 33, 11 encontramos: Deus não se agrada com a morte dos injustos. Querem mais? O mesmo deus também é autor intelectual, portanto cúmplice, de feminicídios e estupros. Deem uma olhada na narrativa ao mesmo tempo nojenta e machista constante em Juízes, 19, 29. Não vou transcrever detalhes. Confiram vocês mesmos. Como observa Richard Dawkins (1941 – ), é apavorante.
Também não vamos esquecer do sadismo. Em Gênesis, capítulos 6 a 9, Deus condena todos os seres vivos da Terra à morte por afogamento apenas por causa dos pecados dos homens. No capítulo 8, o versículo 21 é explícito: O Senhor sentiu o aroma agradável (do holocausto). É claro que o Dilúvio e a Arca de Noé nunca existiram. Para saber porque, assista às Oficinas de Astronomia® números 445 e 448, disponíveis no canal da Rede Omega Centauri no YouTube, e/ou adquira a publicação digital Oficinas de Astronomia® – Coletânea – Volume 2, referência ωκ-SP-2020.11, disponível na loja virtual do site da Rede (www.redeomegacentauri.org).
Então cabe a indagação: é esse elemento mau caráter que irá separar o joio do trigo no suposto dia do Juízo Final?!
Fatos Extraordinários…
… requerem evidências extraordinárias, dizia Carl Sagan (1934 – 1996). Pessoalmente, eu não teria nada contra a existência de um deus. Uma vez provada a sua existência, de forma a gerar consenso científico, passaria a acreditar nele, reconhecendo sua presença e importância.
Mas isso nunca irá acontecer. E a razão é simples: a maneira como o conceito de Deus é estruturado impede a eventual comprovação científica da sua existência ou inexistência, dentro das limitações inerentes ao método científico. Continuar discutindo a questão afigura-se, então, como perda de tempo e desperdício de energia, muito pior que o lero-lero inútil sobre o sexo dos anjos.
Embora a ciência não possa comprovar a existência ou a inexistência de Deus além de quaisquer dúvidas, ela pode, sim, como já salientamos, mostrar que a figura de Deus é dispensável, isto é, não necessária. O que não implica, absolutamente, que ele não exista. Porém, a lógica, a moral e a ética sugerem, de maneira contundente, que Deus não existe, ou então que, se existente, com toda a certeza não é, no mínimo, onibenevolente. Isto equivale a um atestado de incapacidade, se ele não for onipotente, de ignorância, se não for oniciente, ou então de canalhice mesmo, caso seja os dois.
Por outro lado, admitir a existência de qualquer um dos integrantes do vastíssimo panteão de divindades inventadas pela humanidade ao longo de milhares e milhares de anos, com suas feições antropomórficas e personalidades frequentemente eivadas de defeitos e qualidades humanas, soa tão ridículo quanto pueril a qualquer pessoa minimamente esclarecida, que se torna bastante seguro afirmar de uma vez por todas, como o faz Amyr Klink (1955 – ) em seu livro Não Há Tempo a Perder (2016, Editora Tordesilhas, São Paulo): Deus não existe, e pronto.
—————
* Astrônomo, presidente do conselho curador da Rede Omega Centauri para o Aprimoramento da Educação Científica.
www.luizaugustoldasilva.com
Compartilhe este texto em suas redes sociais.
www.redeomegacentauri.org
20241207