Se confirmada, descoberta representaria uma das maiores conquistas da ciência de todos os tempos.
Luiz Augusto L. da Silva*
A segunda-feira, 14 de setembro de 2020 poderá, um dia, entrar para a história do conhecimento humano como a data em que cientistas haveriam encontrado a primeira prova da existência de vida extraterrestre.
Contrariando todas as expectativas, não estamos falando de uma exoterra distante, nem de Marte, Europa, ou Enceladus, aqui no nosso sistema solar. O planeta Vênus, vizinho cósmico mais próximo, gêmeo da Terra em termos de dimensões físicas como massa e diâmetro, mas radicalmente diferente em termos de condições ambientais, ganhou as manchetes após a divulgação de uma pesquisa em que uma equipe internacional de astrofísicos chefiada por Jane Greaves anunciou ter detectado a presença de fosfina (PH3) em uma camada de nuvens altas na atmosfera venusiana, entre 50 e 70 km acima da superfície do planeta, numa concentração de cerca de 20 partes por bilhão (Greaves et al., 2020, https://doi.org/10.1038/s41550-020-1174-4).
Utilizando o Telescópio James Clerk Maxwell, no Hawai’i, e o Atacama Large Millimeter Array (ALMA) no Chile, foi possível observar uma linha de absorção no comprimento de onda λ 1.123 mm, atribuída à transição rotacional 1-0 das moléculas de fosfina, hoje em dia considerada como um dos biotraçadores mais confiáveis para a detecção remota e indireta da existência de vida na atmosfera de um planeta, de acordo com a pesquisa de Clara Sousa-Silva (1987 – ), uma jovem e brilhante astrofísica portuguesa conhecida como “doutora fosfina”, atualmente no MIT (Sousa-Silva, C., 2020, Astrobiology, 20, 235).
No artigo, os pesquisadores enfatizam que a existência daquela substância em Vênus não pode ser explicada com base em processos abióticos (por exemplo, relâmpagos, vulcanismo, ou transporte por meteoritos). A menos que seja devida a processos fotoquímicos ou geoquímicos desconhecidos, ela indicaria a presença de microorganismos integrantes de uma biosfera aérea naquele planeta.
Ideia Antiga
Vênus é um inferno. A temperatura em sua superfície é de 460o C, e a pressão atmosférica noventa vezes maior que a pressão terrestre ao nível do mar. A atmosfera venenosa, além de conter quase exclusivamente dióxido de carbono (96%), ainda é rica em uma perversa mistura de ácidos, principalmente ácido sulfúrico (H2SO4). Não existe água nem oxigênio. Um mundo com estas características, prisioneiro de um efeito estufa mortal, poderia parecer o último lugar para se procurar formas de vida alienígenas.
Mas a verdade é que, já em 1967, Carl Sagan (1934 – 1996) e Harold Morowitz (1927 – 2016) aventaram a possibilidade de que poderia existir vida microbiana em camadas mais altas da atmosfera onde, apesar do ambiente ainda hiper-ácido, o clima seria temperado, com marcas de temperaturas ao redor de 30o C a 60o C, e a pressão comparável à pressão atmosférica da Terra ao nível do mar (Sagan e Morowitz, 1967, Nature, 215, 1259). A mesma ideia básica foi retomada mais tarde por outros autores, entre eles David Grinspoon (sobrinho de Sagan) em 2003 no livro Venus Revealed: A New Look Below the Clouds of our Mysterious Twin Planet (Addison-Wesley, Reading, MA, USA, 355 pp.), e Limaye et al., (2018, Astrobiology, 18, 1181).
A fosfina também está presente nas atmosferas redutoras dos planetas gigantes, onde é produzida em condições de alta temperatura e pressão nas camadas mais profundas, e carregada para cima pela circulação convectiva. Nos planetas rochosos, ela é rapidamente destruída, tanto nas crostas quanto nas atmosferas, que apresentam condições altamente oxidantes. Na Terra, a atividade biológica é responsável pela produção constante de moléculas de fosfina, à razão de aproximadamente 107 a 108 moléculas por centímetro quadrado por segundo (em Vênus, os pesquisadores estimam uma taxa de produção de cerca de 106 a 107 moléculas/cm2.s).
Ciclo Biológico
O cenário básico imaginado para o caso de Vênus é que eventuais microorganismos extremófilos acidófilos poderiam ser encontrados no interior das gotículas líquidas presentes nas altas nuvens da atmosfera do planeta. À medida que tais gotículas crescem, ficam mais pesadas e precipitam em direção as camadas mais quentes, densas e profundas. A evaporação das gotas induziria a esporulação dos microorganismos, que se depositariam em forma latente entre 33 e 48 km acima da superfície do planeta, em uma camada conhecida como camada de neblina inferior. Eventualmente estes esporos seriam transportados de volta à alta atmosfera, por difusão causada por ondas de gravidade, onde atuariam como núcleos de condensação para a formação de novas gotículas, retornando à vida e fechando o ciclo.
Parece bastante razoável. Sabemos que, aqui na Terra, as nuvens abrigam diversas espécies microbianas, como bactérias, archaea, eucariotos e vírus (Amato et al., 2017, PLoS One 12:e0182869; e 2019, Sci. Rep., 9, 4383). A maioria desses microorganismos vivem nas gotículas de água, mas alguns também flutuam livremente na atmosfera, sendo eventualmente trazidos à superfície pela precipitação de chuva ou neve.
Ficção x Realidade
Em matéria de busca por vida extraterrestre, a ficção sempre andou a frente da ciência. E com Vênus não foi diferente. Escritores, e até mesmo cientistas, imaginaram cenários diversificados para aquele mundo que se escondia permanentemente atrás de uma enigmática atmosfera opaca, povoados por seres que iam de dinossauros a plantas carnívoras.
É possível distinguir duas categorias básicas de cenários venusianos hipotéticos: húmidos, e secos. Cenários húmidos incluíam pântanos, tempestades tropicais, e oceanos globais, pontilhados aqui e ali por raras ilhas. É o que encontramos, por exemplo, em Last and First Men, novela de ficção científica assinada por Olaf Stapledon (1886 – 1950) em 1930. Em Lucky Starr and the Oceans of Venus, de Isaac Asimov (1920 – 1992), escrita em 1954, a paisagem venusiana lembra uma cena terrestre do período Cambriano, com abundantes e exóticas formas de vida aquáticas. O grande químico sueco Svante Arrhenius (1859 – 1927) em seu The Destinies of the Stars, de 1918, descreve Vênus como coberto de pântanos pré-históricos, semelhantes às atuais florestas tropicais da República do Congo.
Entre os cenários secos, em 1922 os astrônomos norte-americanos Charles Edward St. John (1857 – 1935) e Seth B. Nicholson (1891 – 1963) propuseram um Vênus poeirento, ventoso e desértico, um cenário que foi aproveitado no livro A Grande Chuva, de Poul Anderson (1926 – 2001), publicado em 1954.
Todas estas fantasias ruíram por terra na década de 1960, a partir dos sobrevoos das primeiras sondas automáticas, como a nave norte-americana Mariner 2, em dezembro de 1962, a partir da confirmação da escassez absoluta de água, e da existência de um colossal efeito estufa.
Repercussões
Muita calma nessa hora! É preciso analisar as evidências disponíveis com toda a cautela. Qual será o próximo passo? Os cientistas vão tentar observar outras linhas de absorção produzidas pelas moléculas de fosfina. Elas devem estar presentes no espectro venusiano, para a descoberta ser confirmada.
Mesmo assim, a presença de formas de vida verdadeiramente alienígenas não estaria estabelecida. O professor de astrobiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em Porto Alegre, Jorge Alberto Quillfeldt lembrou, em conversa mantida com este colunista, que mesmo no caso da confirmação de uma origem biológica, ainda não se poderia excluir a possibilidade de a atmosfera de Vênus haver sido contaminada por microorganismos levados da Terra pelas diversas sondas espaciais que foram remetidas para aquele planeta ao longo das últimas décadas. Seria uma possibilidade um tanto remota, mas que não poderia ser descartada, devendo ser investigada à exaustão.
A verdade é que só saberemos daqui a algum tempo, pois será necessário enviar uma sonda específica para pesquisar, e se possível recolher amostras da atmosfera venusiana para análises mais detalhadas.
O episódio ilustra bem o rigorismo com que a ciência costuma tratar essas questões, a fim de minimizar enganos e evitar chegar a falsas conclusões.
Suponhamos que fosse confirmada a hipótese de contaminação a partir da Terra. O que deveríamos fazer? Adotar procedimentos muito mais rigorosos de esterilização das futuras espaçonaves a serem enviadas para Vênus, e nos esmerarmos mais ainda nos casos daquelas que, um dia, irão para Marte, Europa, Enceladus, e outros mundos mais distantes do sistema solar.
Por outro lado, se a hipótese da “panspermia” puder ser excluída com segurança, e a presença de microorganismos autenticamente venusianos resultar firmemente estabelecida, as lições também serão profundas, indicando que nosso sistema solar provavelmente está infestado de formas de vida, e o universo idem. Será um forte indício de que seres vivos são abundantes, podendo ser encontrados mesmo em locais à primeira vista não muito favoráveis em termos de habitabilidade. E, neste caso, o “Grande Silêncio” irá se aprofundar ainda mais.
Luiz Augusto L. da Silva é astrônomo, e desde 1973 observa Vésper e a Estrela D’Alva com profunda admiração.
(www.luizaugustoldasilva.com)