por Luiz Augusto L. da Silva
Tenho assistido, boquiaberto e horrorizado, à escalada cada vez mais agressiva dos adeptos do criacionismo e do design inteligente. Abundam os vídeos na Internet, e as palestras ao vivo, assistidas muitas vezes por jovens e crianças. Perplexo, tomo conhecimento da constituição de um grupo criacionista, o Discovery Mackenzie, em uma universidade paulista. Universidade que, aliás, nos saudosos idos dos anos 1960, criou o CRAAM – Centro de Radio Astronomia e Astrofísica Mackenzie, liderado pelo professor doutor Pierre Kaufmann, assistido também por Oscar T. Matsuura (hoje na USP), e muitos outros pesquisadores, pioneiros da radioastronomia no Brasil, e que ganharam projeção e reconhecimento internacionais, principalmente por seus trabalhos com o radiotelescópio de Itapetinga, em Atibaia, uma antena para ondas milimétricas, de 13.7 m de diâmetro.
No posfácio do livro Quem Manda no Mundo? (Editora Crítica, 2018), Noam Chomski, do MIT, chama a atenção para o fato de, nos EUA, a secretária nacional de educação, indicada pelo presidente Donald Trump, ser uma bilionária pertencente a uma seita protestante radical que prega, entre outras barbaridades, que “se a ciência contradiz a religião, então esqueça a ciência…”. Guardadas as respectivas proporções, algumas autoridades brasileiras, recentemente também têm se manifestado como adeptas do criacionismo.
Não queremos restringir a liberdade de pensamento de ninguém, mas devemos observar que a ascensão do absurdo traz, além da alienação, uma lavagem cerebral em massa que oferece oportunidades políticas para autoridades de competência e sanidade mental duvidosas. Estamos vivendo isto hoje.
Análise Filosófica
A Evolução não funciona, então Deus criou tudo o que existe, e a Bíblia tem toda a razão, devendo ser interpretada em sentido literal. Esta é a falsa máxima em que se baseiam os criacionistas. Na construção deste princípio, existem uma série de atropelos filosóficos e metodológicos.
Em primeiro lugar, a Evolução não é mais uma hipótese, e sim uma teoria. Em linguagem científica, isto significa que ela se acha bem estabelecida. Não adianta espernear, não há mais como negá-la. Mas suponham que ela não funcionasse. O que deveríamos fazer? Nos atirar de cabeça no criacionismo, ou, antes, procurar por modelos racionais alternativos? Eis o segundo atropelo! O terceiro vem logo em seguida: feita a opção irracional pelo criacionismo, caímos no conceito de Deus. Mas qual Deus? Javé? Alá? Jeová? Marduk? Quetzacoatl? Thor? Ísis? Shiva? Tupã? Porque simplesmente nenhum deles, mas ainda assim um deus desconhecido por todos, que não pode ser encontrado em nenhum credo religioso tradicional existente, e que simplesmente não se importa, e nem quer se comunicar conosco?
Agora vejam: atribuir a existência do Universo a um (ou, por que não?) mais de um criador, num momento parece resolver o problema. Mas não resolve. Deus criou o universo. OK, mas quem criou Deus? Ora, ele sempre existiu! OK, então porque o universo (em seu sentido mais amplo admitido hoje pela cosmologia, ou seja, o multiverso) não poderia ter existido sempre? Ademais, dizer que as coisas são assim e assado porque um deus quis, é desculpa de preguiçoso para não arregaçar as mangas e sair a campo, armado com a método científico, para descobrir as verdadeiras causas da realidade, que, via de regra, revelam-se bem mais complexas – e surpreendentes – que as explicações mitológicas.
Porque o Universo existe, em lugar de não existir? Porque a existência implica num estado ou situação mais estável que o não existir. Quer dizer, o Big Bang aconteceu espontaneamente. Onde, então, se faz necessária a figura de um criador? Ademais, como bem observa Stephen Hawking, a pergunta “Deus existe?” não faz sentido, uma vez que, antes do Big Bang, não havia nem tempo nem espaço onde um criador pudesse existir…
O quarto e mais grave atropelo consiste em “puxar a brasa para o seu assado”, isto é, como a evolução não funciona e o Big Bang não aconteceu, então existe um deus, e este deus é, com certeza, o deus da Bíblia, e só ele… Ele construiu o mundo e o universo em sete dias de 24 horas, como está descrito no livro do Gênesis.
A Hipótese de um Design Inteligente
Por incrível que pareça, existe, sim, a possibilidade de um design inteligente para o universo ou, mais modestamente, para a origem e a evolução da vida na Terra. No terreno da especulação puramente científica, não se poderia, em princípio, excluir completamente que uma civilização “extra-universal”, do tipo V dentro da classificação estendida de Kardashev (ver a Oficina de Astronomia® 442, disponível no Youtube) tivesse criado deliberadamente uma singularidade em laboratório, e depois detonado a mesma, dando origem ao nosso universo. Estes seres hipotéticos, para todos os efeitos práticos, poderiam ser considerados como deuses (embora não o fossem…). Já dizia Arthur C. Clarke (1917 – 2008): toda a tecnologia muito avançada é indistinguível de magia! Se algo do tipo que acabamos de descrever aconteceu realmente, então não seria de surpreender a sintonia fina de todas as constantes físicas fundamentais, cujos valores, se fossem infinitesimalmente diferentes, resultariam em um universo onde a existência de estrelas, planetas, e da própria vida seriam impossíveis. Este tipo de ideia é o que costumo chamar de design inteligente amplo.
Entretanto, este cenário altamente especulativo parece muito improvável, à luz do que sabemos hoje. Primeiro, a existência de uma civilização tipo V beira as raias do delírio. Segundo, porque a sintonia fina do nosso universo pode ser explicada dentro do contexto de um multiverso eterno, onde infinitos big bangs estão acontecendo espontaneamente por todos os cantos e a todo instante, gerando uma infinidade de universos onde os arranjos de constantes físicas são os mais diversos imagináveis. Como seria natural, somente naqueles universos dotados, por acaso, dos arranjos corretos, surgiriam estrelas, planetas, e a vida. Como nosso universo é assim, não é surpreendente que vivamos nele. Tal constatação é conhecida como Princípio Antrópico.
Numa escala bem mais modesta, também se poderia especular sobre a possibilidade de a vida na Terra ter surgido, e/ou ter evoluído em termos darwinianos, contando, em alguns momentos, com a intervenção de uma civilização extraterrestre do tipo II de Kardashev. Esta idéia é bem explorada na ficção científica. É o que chamo de design inteligente restrito.
Neste contexto, a biologia ainda se defronta com muitos enigmas. Não sabemos, exatamente, como a vida teria se originado. Não sabemos com certeza como apareceram as primeiras moléculas de DNA. Os sinais mais antigos da presença de vida na Terra datam de entre 3.5 e 3.8 Giga-anos. Mas, desde então até o presente, em cerca de 80% de todo o tempo, praticamente só existiram micróbios na Terra. Foi somente há cerca de meio giga-ano, que a vida se diversificou para valer, rumo a formas de grande complexidade.
A Surpreendente Explosão Cambriana
Há cerca de 530 Mega-anos, os registros fósseis ficam subitamente mais ricos. Este fenômeno é referido pela paleontologia como a “Explosão Cambriana”. Considerando, em particular, o reino Animalia, parece que pelo menos a maioria dos, senão todos os 35 filos animais apareceram dentro de um intervalo de tempo relativamente curto naquele período!
Isto é muito surpreendente, porque o tempo necessário para formar uma nova espécie pelos mecanismos evolutivos usuais, isto é, por processos alopátricos, simpátricos, ou parapátricos, é, em geral, considerado como ao redor de 106 anos. Seguindo pela hierarquia taxonômica, o tempo necessário para consolidar um novo gênero, seria maior. E para uma família, mais ainda. Continuando através de ordens e classes, poderíamos perguntar qual seria o tempo típico necessário para formar um novo filo. Com certeza, muito tempo, pois é conveniente observar que, nos últimos 530 Ma, não surgiu nenhum filo novo! Wang, Kumar e Blair Hedges (1999, Proc. R. Soc. Lond. B, 266, 163) observam que as estimativas para os tempos de divergência entre filos, baseadas em relógios moleculares, têm dado resultados muito diferentes, indo desde 670 Ma até 1200 Ma. O valor mais baixo, encontrado por Ayala, Rzhetsky e Ayala (1998, Proc. Natn. Acad. Sci. USA, 95, 606), condiz com a idade da Explosão Cambriana.
Mas existem controvérsias. A explosão pode não ter acontecido, e o enriquecimento dos registros fósseis seria apenas resultado do aparecimento de seres vivos com corpos maiores, equipados com partes duras, mais resistentes quando fossilizados. A realidade de uma explosão súbita tem sido defendida por autores como Gould (1989, Wonderful Life, New York: W. W. Norton), e Ohno (1996, Proc. Natn. Acad. Sci. USA, 93, 8475), e sido contestada por outros (e.g., Conway-Morris, 1993, Nature, 361, 219).
Até mesmo o aparecimento de todos os filos animais pode não ter se dado integralmente no início do período Cambriano. Alguns já poderiam ter surgido bem antes. Não sabemos.
Porém, mesmo assim a origem de tantos filos quase ao mesmo tempo dá o que pensar. Teria resultado de um mega projeto planetário de engenharia genética, orquestrado deliberadamente por uma civilização extraterrestre avançada, uma vez identificado o potencial favorável do nosso planeta à evolução de formas de vida?
E o que dizer da intrigante arquitetura helicoidal da molécula de DNA? Até que ponto resultaria ser fruto do acaso? De novo, um projeto de engenharia biomolecular? Francis Crick (1916-2004), um dos descobridores da dupla hélice, confessou, certa vez, suas desconfianças a respeito. E mais recentemente, em 2017, Maxim Makukov, do Instituto Astrofísico Fesenkov, e Vladimir Shcherbak, da Universidade Nacional al-Farabi Kazakh, que trabalharam por 13 anos no Projeto Genoma Humano, um esforço internacional para mapear o DNA da espécie humana, chocaram a comunidade científica ao propor que nosso DNA havia sido manipulado por seres extraterrestres, sustentando, ademais, que os 97% de sequências de pares de bases nitrogenadas que não contém informação útil possam ser códigos genéticos de formas de vida alienígenas. Convém ressaltar, entretanto, que não existe nada de conclusivo neste estudo, tratando-se muito mais de sensacionalismo, que descoberta científica propriamente dita.
Até onde sabemos, não existem provas para corroborar quaisquer uma destas especulações, que são científicas, sem dúvida, e que não envolvem nenhum tipo de misticismo. A rigor, nenhuma é impossível, mas o Paradoxo de Fermi limita severamente o número de civilizações extraterrestres em uma galáxia espiral como a Via Lactea, embora não seja suficiente para excluir totalmente, e com segurança, a possibilidade de uma intervenção na Terra, feita há centenas de milhões de anos. Contudo, a provável enorme distância entre as escassas civilizações existentes numa galáxia, tornariam extremamente difícil admitir que, entre mais de 40 bilhões de exoterras, nosso planeta fosse um dos eventuais escolhidos.
E tem outro problema, pelo menos com a questão da origem da vida: se ela foi implantada aqui de propósito, isto ainda nos deixa com a questão de descobrir como é que ela teria se formado sozinha em outro lugar do universo.
Acaso, sim
O evento de extinção biológica em massa ocorrido na transição entre o fim do período Cretáceo e o início do período Paleogeno, encerrando a Era Secundária e abrindo a Era Terciária, conhecido como a extinção KT, nos oferece a forma mais contundente para nos convencermos da falsidade – absoluta e além de qualquer dúvida – das ideias criacionistas, quaisquer que sejam.
Há 155 Ma, no cinturão de planetóides, entre as órbitas de Marte e Júpiter, dois asteróides colidiram por acaso. Saltaram cacos para todos os lados, em direções aparentemente aleatórias mas, no fundo, determinadas pelos princípios de conservação dos momentos linear e angular. Um daqueles cacos, com 10 km de diâmetro, entrou numa nova órbita ao redor do Sol e nela permaneceu por 90 milhões de anos, até que, um dia, foi interceptado em seu caminho pelo nosso planeta, resultando atraído, desviado, e acelerado pela gravidade terrestre. Ele precipitou-se na atmosfera, produzindo um bólido de brilho cegante, e impactou a superfície na região da península de Yucatán, a 72000 km/h, num ângulo de mais ou menos 30 graus com o solo. Cancún, hoje um paraíso tropical, já foi sinônimo de inferno, quase no epicentro da catástrofe, há 65 Ma.
Foi produzida uma cratera com cerca de 200 km de diâmetro, e injetada quantidade fenomenal de rochas e poeira na alta atmosfera terrestre. Seguiram-se uma poderosíssima onda de choque, uma nuvem piroclástica suborbital de propagação global, abalos sísmicos violentos, um tsunami com ondas de 100 metros de altura, incêndios, chuvas ácidas, surtos de vulcanismo, e um obscurecimento drástico do fluxo de radiação solar que pode haver durado meses, talvez até vários anos, atingindo em cheio as plantas, que morreram em grande quantidade, devido ao frio e à falta de luz, sabotando toda a cadeia alimentar da biosfera planetária.
Estima-se que até 75% de todas as espécies existentes naquele momento geológico se extinguiram, entre elas, os dinossauros, que tinham reinado como senhores absolutos do mundo por 160 milhões de anos.
Graças a este evento aleatório de colisão, os mamíferos, que já existiam timidamente, sendo pequenos e inexpressivos no contexto ecológico, finalmente puderam prosperar. Os registros fósseis imediatamente posteriores ao estrato geológico que assinala a transição KT apresentam uma irradiação explosiva de mamíferos placentários (vejam, e.g., Hedges et al., 1996, Nature, 381, 226). Isto vai desembocar, cerca de 60 Ma mais tarde, no aparecimento das primeiras espécies de hominídeos pré-humanos, espalhados pelas savanas africanas. Com o tempo, eles vão dar lugar, nos dias de hoje, a uma pandemia letal extremamente contagiosa, a praga conhecida como Homo sapiens sapiens.
Para qualquer mente minimamente racional, a conclusão é cristalina: definitivamente, NÃO FOMOS PLANEJADOS!